Neusinha Moleque.
Neusinha Moleque era paraíba. Ou seja, mulher macho. Ainda não se usava a expressão sapatão, que surgiu alguns anos mais tarde. Nenhum preconceito, apenas uma designação. Nos anos sessenta, homossexual era veado mesmo, e mulher macho era paraíba. A Neusinha circulava pelo Largo de Pinheiros e imediações. Frequentava os bares, tomava cerveja com a rapaziada, subia até o Snooker, mas era sempre uma figura meio marginal. Não pertencia a nenhuma turma do pedaço. E ninguém sabia onde morava, de onde vinha e para onde ia no final da noite. Era uma das muitas figurinhas carimbadas que circulavam pelo bairro, quase uma lenda. Diziam que andava armada. Não sei se carregava uma navalha como usavam as prostitutas e os travestis da Zona. Lembro até hoje das raras vezes em que ela se aproximou de nossa roda no bar do Toninho. O bar do Toninho ficava bem atrás da igreja do Largo de Pinheiros, pertinho do Bar das Batidas - cujo apelido, devido à localização, era cú do padre. O bar do Toninho era nosso preferido, porque o Toninho, um português com cerca de trinta anos, era boa praça, bom de piadas, parecia mais um da turma. Já o bar do Gordo, ao lado, era mais antigo, tinha uma boa feijoada na madrugada de sexta-feira, mas seus donos e irmãos - o gordo e o magro - eram meio escamosos, não davam muita bola para nossa turma. A barra também era mais pesada no bar do Gordo, frequentado pelos motoristas de praça, mas também por cafetões, ladrões do bairro, viciados e traficantes que iam matar a fome nas madrugadas. E, logicamente, pelos investigadores de polícia, que iam comer de graça e ficavam de butuca para ver se pegavam alguma informação ou algum flagrante. Pois bem, voltando à Neusinha Moleque, todos sabiam que ela frequentava as bocas do Centro da cidade, tanto a boca do luxo - aquela das boates, das mulheres bonitas - como a boca do lixo - aquela das mulheres nas ruas e nas portas dos apartamentos sujos e malcheirosos. E que se prostituía, tanto com homens quanto com mulheres. Mas, também fazia sucesso com as prostitutas e tinha amantes mulheres por lá, que brigavam entre si pela parceira. E que ninguém se metesse com ela. Brigava muito, a Neusinha. Corriam boatos de que já tinha batido em três soldados da Força Pública de uma vez. Então, ninguém se metia a besta. Todo mundo tratava bem a baixinha, e aceitava suas intromissões nas rodinhas onde se tomava cerveja e se jogava palitinho. Na verdade, em minha lembrança ficaram apenas algumas histórias que ouvi dela em sua filosofia de sarjeta. Entre essas histórias, fiquei particularmente impressionado com o relato de uma ocorrência, talvez por ter acontecido próximo à minha casa. O fato ocorrera na Al. Gabriel Monteiro da Silva, num bairro nobre de São Paulo. Segundo Neusinha, ela foi chamada pelo telefone por um senhor de idade que morava sozinho numa mansão daquela alameda. Só ele e as empregadas. Chegando lá, foi abrindo o portão como ele instruíra, já que tinha dispensado as serviçais. Recebida pelo dono da casa, foram direto para o quarto. Não era a primeira vez que ela prestava seus serviços a ele, e já conhecia os aposentos. O impressionante do fato ocorreu a seguir. Quando estavam em pleno ato sexual, ela por cima dele como já estava acostumada, ele quase atingindo o clímax, o homem teve um "piripaque", um infarto, e começou a gemer, ficou paralisado. Ela, depois do susto, se vestiu rapidinho e tentou reanimá-lo, mas percebeu que já estava morto. Assim sendo, não teve dúvidas: Arrumou as coisas, arrumou o velho, saiu de fininho, fechou todas as portas, olhou na calçada para confirmar que a rua estava vazia e pernas pra que te quero. Sumiu na madrugada. E nunca mais apareceu ou procurou saber o final da história. Provavelmente as empregadas encontraram o velho morto. Devem ter chamado a família e o homem foi enterrado normalmente, como qualquer enfartado que morre em casa. Só que ninguém ficou sabendo que o velho morreu transando, e que no momento do infarto já devia estar quase no paraíso.
A Neusinha era de morte.
A Neusinha era de morte.

<< Home