Tuesday, September 28, 2010

Com o dedo na ferida.

(Este post foi publicado pela Revista Náutica - Edição de novembro/2010)

Para quem gosta de água e de aventura, a vontade de navegar supera tudo. Meu irmão Luiz tem todos os predicados para ser um grande navegante. Adora a água - seja de um rio, uma represa ou do mar - e topa qualquer parada para poder navegar.
Quando começamos a fazer negócios juntos e ganhar uns trocados, pensamos logo em comprar um barquinho à motor. Já tínhamos sido sócios num pequeno veleiro Paturi, comprado e mantido na represa de Guarapiranga, em São Paulo. Estávamos em pleno 1988 e era tempo de evoluir.
Mas, a grana ainda era pouca, e não podíamos investir muito. Ele então procurou nos jornais de usados e encontrou um inflável de quatro metros. “Usado, mas em ótimo estado”, dizia o anúncio. E comprou aquela joia.
Começamos então a procurar por um motor de popa poderoso para empurrar aquele espaçoso inflável. E novamente foi o Luiz quem encontrou um possante. Tratava-se de um Evinrude 25 HP com poucos anos de vida, segundo o proprietário. E era tratado com todo o carinho. O próprio filho dele cuidava da mecânica. E olha que o garoto tinha apenas dezessete anos.
Bom, a verba era curta, não dava para escolher muito. Tentamos negociar, oferecemos um micro montado para o garoto, mas nada o fazia mudar de idéia. Queria mil dólares pelo motor, nem mais nem menos. Estávamos na casa deles, já era sexta-feira à noite, e a vontade de navegar no final de semana superou qualquer resquício de cautela. E compramos o motor.
A viagem para Ubatuba nunca pareceu tão longa. Eu tinha um trailer estacionado num camping da praia da Lagoinha, e para lá rumamos já de madrugada, chegando às três da manhã.
Dormimos muito pouco, a família toda, esperando pela luz do dia para podermos entrar no mar e navegar por aquelas ilhas e pelas costeiras maravilhosas e desconhecidas que já conseguíamos ver em nossa imaginação.
Às oito da manhã estávamos colocando o barco na água, depois de gastar muito fôlego para enchê-lo. Subimos à bordo, eu, o Luiz, meu filho Felipe e o Tavinho, meu sobrinho. O motor não deu chabú, pegou logo entre a centésima e a duocentésima puxada da cordinha. O problema é que, quando começamos a acelerar, ele parecia não ter força para empurrar aquele peso todo. Parecia ter apenas cinco HP. Tínhamos caído no golpe do motor de popa.
A essa altura não dava mais para reclamar. Vamos passear assim mesmo, decidimos. E saímos em direção à ilhota da Lagoinha, onde ancoramos e ficamos nadando e mergulhando. Que maravilha. Finalmente tínhamos nossa própria embarcação. Não era grande coisa, mas para nós era o paraíso, tudo pelo que tínhamos sonhado. Nossos filhos estavam orgulhosos de nós.
Depois de umas duas horas, resolvemos voltar à praia, que estava a cerca de quinhentos metros. E ocorreu a primeira surpresa. O barquinho estava murchando, esvaziando devagar, devia estar furado, sei lá.
Aí, bateu o desespero. Chamamos os garotos correndo, entramos todos no barco, ligamos o motor que pegou mais rápido dessa vez e partimos capengando de volta para o camping. O barquinho, meio murcho, ia navegando de lado, querendo virar para bombordo por conta própria, mas conseguimos conduzi-lo até a praia. Alívio total.
Depois dessa desastrada aventura fomos almoçar com as esposas, e o Luiz saiu pela cidade atrás de um kit para tapar os buracos do barco. Voltou apenas às sete horas da noite, exultante com os remendos de borracha e a cola de sapateiro que “descolou” em alguma biboca de Ubatuba.
Enquanto todos jantavam, assistiam televisão e iam dormir, o Luiz trabalhava. Desmontou toda a carcaça do inflável e remendou um a um todos os pequenos furos que encontrou nas câmaras de ar. Segundo nos contou no dia seguinte, só foi dormir às duas da manhã, depois de fechar e encher de ar novamente o barco. Tinha encontrado mais de dez furos naquela jóia.
Mas, como bom marinheiro, não desistia, e às oito da manhã já estava em pé, pronto para nova aventura nos mares de Ubatuba.
Saímos então, os quatro aventureiros, em nova travessia motorizada. Desta vez, como tínhamos um barquinho reformado – e apesar do motor pópópó que não rendia nada – resolvemos navegar paralelo à costa em direção à ilha do Mar Virado. Não sei por que, mas esse nome me assusta um pouco até hoje.
Quando tínhamos percorrido talvez umas duas milhas, encontramos uma encosta muito alta com águas de um verde claro, transparente, que nos convidavam para um refrescante mergulho. Acho que todos pensaram ao mesmo tempo: É aqui que nós vamos ficar. Antes mesmo de ancorar, os meninos já tinham pulado na água e começaram a nadar em direção ao paredão de pedra.
Engraçado que por nenhum momento me ocorreu não termos coletes salva-vidas ou qualquer outro meio de salvamento além do próprio barco, que pelo menos era inflável e não afundava.
Pois bem, enquanto o Luiz punha o motor em ponto morto, eu me encarreguei da pequena âncora que se abria em três hastes pontudas. E caprichei. Girei a âncora uma, duas, três vezes e PAU...ela raspou a superfície do barquinho e fez um furo.
Sim, parecia impossível, mas tinha acontecido. O barquinho estava furado, e chiava como uma panela de pressão. Imediatamente coloquei um dedo na ferida - no furo - e gritei para o Luiz chamar as crianças porque o barco podia afundar. Os moleques nadaram como golfinhos movidos pelo desespero e pelos gritos do Luiz, que ao mesmo tempo tentava ligar o motor e gritava: “Seu maluco, sabe quantas horas eu trabalhei para tapar os furos ?”. “Seu desastrado, por que você fez isso ?”. Como se eu tivesse feito de propósito.
Para completar, o motor não queria mais pegar. Foram mais de quinze minutos de sofrimento e centenas de puxadas na cordinha para que ele finalmente pegasse e nos empurrasse a dois e meio nós por hora de volta até o camping. Meu dedo já não doía mais apertando aquele furo – tinha adormecido. O braço ameaçava ter uma cãibra e eu não achava uma posição para me firmar no barco. Foram as duas milhas mais longas de minha vida.
O Luiz acelerando e xingando, os meninos tremendo e rezando, o motor resfolegando e eu me equilibrando no inflável com o dedo enfiado naquele buraco para evitar o pior. Quando fizemos a volta na última pedra e avistamos a praia da Lagoinha novamente, bateu um alívio geral. Mais uns quinze minutos e encostamos na praia. Só faltou chorarmos de alegria.
Bem, a história termina aqui, porque o Luiz perdeu o entusiasmo e não quis mais consertar o barco. Aliás, não quis mais falar comigo por um bom tempo.
Também mudou o tempo e choveu muito no dia seguinte, enchendo todo o camping de água e acabando de vez com o programa.
Ficou o gosto pela navegação que pude curtir tão pouco mas que me contaminou. Desde 1997, quando comprei minha pequena e marinheira Wellcraft 19, um Utility Boat, já naveguei muito. Dei a volta em Ilhabela, circulei pelo canal de Bertioga mais de cinqüenta vezes, levei a lanchinha para Angra, Barra do Una, as Ilhas. Hoje navego numa Fishing 22 UB, e nunca mais esqueci a lição: Não deixo de conferir o material de salvatagem, e sigo religiosamente todas as rotinas de ancoragem que aprendi com o Carlão nos cursos de Arrais e Mestre.
E fiz uma promessa: Navegar no dedo, nunca mais.